"Projeto Mbappé" vale a pena?
Especialização precoce e as suas consequências nos jovens atletas.
A especialização precoce no desporto, que se trata da associação de crianças, desde muito cedo, a um só desporto e do intenso treino que estas realizam desde tenra idade, sem alguma vez experienciar outras práticas desportivas diferentes, é um fenômeno cada vez mais comum em muitas comunidades desportivas ao redor do mundo. Isto acontece, na medida em que se criou a necessidade de iniciar cedo o desenvolvimento físico e cognitivo dos jovens atletas, para se alcançar objetivos desportivos, impostos cada vez mais rapidamente.
Hoje em dia, observam-se crianças com idades que variam entre os três e os dez anos, a serem treinadas intensivamente, com a intenção de que estas, no futuro, cheguem ao seu pico de forma precocemente e, por esse mesmo motivo, alcancem o alto rendimento no seu desporto de eleição. Esta prática envolve a concentração exclusiva do praticante num único objetivo, limitando-o o a uma rotina repetitiva, na qual se desvaloriza a prática de outros desportos ou atividades físicas. Tome-se o exemplo de uma criança que viralizou recentemente na internet precisamente por o seu pai brincar com a temática da especialização precoce. Jordan Green, o seu pai, estaria a desenvolver um, como ficou conhecido, "Projeto Mbappé", em alusão ao craque frânces, para preparar Zion Green, atualmente apelidado de "Broski", para ser um grande jogador de futebol, o mais cedo possível, na medida em que esta piada já começou há uns anos, apesar de "Broski" apenas ter três anos. Esta brincadeira de Jordan tomou dimensões enormes, pela popularidade que os seus vídeos obtiveram, em tão pouco tempo.
Embora esta abordagem possa oferecer benefícios em termos de desenvolvimento de habilidades específicas para uma modalidade, que é o grande objetivo daqueles que a adotam, também apresenta uma série de desafios e preocupações que devem ser tidos em conta. Deste modo, passamos à enumeração dos benefícios e riscos desta opção desportiva.
Potenciais Benefícios da Especialização Precoce:
Desenvolvimento de Habilidades Específicas: A prática intensiva de um único desporto desde tenra idade pode permitir aos jovens atletas o desenvolvimento de habilidades técnicas e táticas avançadas nesse desporto.
Melhoria da Performance: A especialização precoce pode levar a melhorias rápidas na performance em competições específicas, uma vez que os atletas possuem mais tempo para se dedicarem ao aperfeiçoamento das suas habilidades, podendo alcançar o sucesso de uma forma mais rápida.
Foco e Determinação: Os jovens atletas que se especializam precocemente podem desenvolver um alto nível de foco, autocontrolo e determinação em relação ao seu desporto, o que pode ser benéfico para o seu sucesso a nível académico e social, fazendo uma transferência de competências entre estas vertentes distintas.
Riscos e Desafios Associados à Especialização Precoce:
Lesões: A prática excessiva de um único desporto pode aumentar o risco de lesões, visto que o corpo das crianças ainda está em desenvolvimento. Isto pode incluir lesões musculares, articulares, de stress, pela repetição exagerada de um mesmo gesto, que seja característico do seu desporto e, até mesmo, lesões de crescimento, que poderão ser irreversíveis, afetando o próprio crescimento do jovem.
Burnout: A pressão para ter sucesso no desporto escolhido, desde uma idade muito jovem, na qual a criança não possui preparação psicológica, pode conduzir a um burnout precoce, isto é, o momento em que os jovens atletas perdem o interesse ou a motivação para continuar a praticar a mesma modalidade que sempre praticaram, algo que leva, na maioria das vezes, ao abandono ("dropout") repentino.
Desenvolvimento Global: A participação em uma variedade de desportos e atividades físicas pode promover um desenvolvimento físico, cognitivo e social mais abrangente e rico em jovens atletas. Por outro lado, a especialização precoce pode limitar essas oportunidades de desenvolvimento e prejudicar a criança futuramente.
Pressão Excessiva: A pressão dos pais, treinadores e até mesmo dos próprios atletas, para alcançar o sucesso no seu único desporto pode levar a níveis excessivos de stress, nervosismo e ansiedade, que poderiam ser evitados, recorrendo a alternativas ao método.
Considerações Importantes:
Abordagem Individualizada: Não existe uma abordagem única que seja adequada para todos os jovens atletas. Desta forma, é importante considerar as necessidades individuais, habilidades e interesses de cada criança ao decidir acerca da posição a tomar nestes aspetos, tendo a consciência de que decisão final deverá ser sempre da mesma, acompanhada por aqueles que são responsáveis por ela. Desta forma, podem optar pelo ingresso e investimento numa única modalidade, ou em várias, repartindo o seu tempo e dedicação por todas elas.
Monitorização da Saúde e Bem-Estar: Os pais, treinadores e profissionais de saúde, sendo os responsáveis pelo bem-estar do atleta, devem estar atentos à saúde física e emocional dos jovens que lhes são próximos e estar preparados para intervir e auxiliá-los, caso haja sinais de problemas, como lesões, ou fadiga, tanto física, como psicológica, devendo ter a noção dos limites da criança e daquilo que será melhor para a mesma.
Promoção da Diversidade: A diversidade de experiências desportivas e físicas é fundamental para o desenvolvimento global dos jovens atletas. Os pais e treinadores devem incentivar a participação dos jovens em uma variedade de desportos e atividades, até que estes estejam prontos para se especializarem numa modalidade, se assim o desejarem. Isto torna-se ainda mais importante no crescimento do jovem atleta a longo prazo, na medida em que, ao existir uma prática variada de desportos, existe uma evolução pessoal a todos os níveis, sendo algo extremamente positivo e crucial para o desenvolvimento do atleta na atividade a que se irá dedicar mais intensamente (após existir a escolha, com vista à especialização). Este fenómeno deve-se à imensidão de experiências diversificadas a que o indivíduo foi exposto num espaço de tempo tão curto e a toda a transferência de competências que poderá realizar entre todas as atividades que realizou, ficando mais rico quer física, quer cognitivamente, que a opção por uma prática deliberada inevitavelmente possui.
É possível crianças especializadas precocemente abandonarem a prática desportiva?
Depois da análise, até superficial, de alguns casos de atletas dedicados a apenas uma modalidade, desde a sua ingressão no mundo do desporto entende-se, facilmente, que a especialização precoce é, muitas vezes, relacionada com o abandono da prática desportiva, em alguns casos, mais cedo que o momento em que isso é considerado mais recorrente. Com esses dados, percebe-se que as opções que aqueles que chegam ao esgotamento da prática desportiva são: ou o atleta abandonar a modalidade, continuando a praticar desporto numa modalidade diferente; ou acabar por abandonar completamente o desporto e a atividade desportiva.
Assim, consegue-se responder à pergunta inscrita acima: é possível isso ocorrer, todavia, esta especialização não é condição necessária, nem condição suficiente para que esse abandono aconteça - ou seja, um determinado atleta ter tido uma especialização precoce numa modalidade desportiva não irá, apenas e só por esse motivo, fazer com que esse atleta tome essa decisão, nem é preciso que um atleta tenha experienciado esta vertente desportiva para que tome esta mesma escolha, existindo vários fatores que os possam levar a isso.
Os treinadores assumem, muitas vezes, papeis importantes nesta questão, uma vez que devem respeitar as etapas de formação dos atletas e fazer treinos adaptados ao seu nível, de forma a considerar os limites físicos, psicológicos e cognitivos de cada um. No entanto, a especialização precoce não é apenas, eventualmente, incutida pelo treinador, já que os próprios pais, e muitas outras figuras, possuem um grande peso neste campo. Todos estes podem, na procura de resultados e numa espécie de obsessão despercebida, incentivar os atletas a treinar em casa, por exemplo, e a irem além das suas capacidades, com a intenção de auxiliarem os seus processos de evolução, podendo, também, influenciar a decisão acerca do desporto que estes tencionam seguir. Para além disso, o próprio atleta, por estar comprometido e empenhado na sua modalidade, tenta, naturalmente, exceder-se, fugindo aos limites impostos pelo treinador, algo que, em casos específicos extremos, pode dar mau resultado.
Para finalizar, o desporto, de forma geral, traz inúmeros benefícios para qualquer indivíduo, contudo devem ser respeitadas as fases de evolução do mesmo, principalmente as das crianças, que estão em processo de evolução corporal, intelectual e comportamental. Para elas é necessário um cuidado acrescido, a fim de que não ocorra uma aprendizagem motora limitada, pois a criança deve ter uma evolução corporal e cognitiva o mais ampla possível. Assim, ter todo este cuidado - e mais algum - deve ser a principal preocupação dos pais, que devem guiar, aconselhar e ajudar a criança no melhor caminho possível.
Concluímos que é importante e indispensável desenvolver estudos acerca deste assunto, que, a par da promoção da sensibilização das pessoas envolvidas no desporto a opções alternativas à especialização precoce, que trazem resultados tão, ou mais, benéficos que a especialização precoce, tornem este método, de certa forma, obsoleto, deixando de ser uma constante na prática desportiva. Em suma, se a evolução do desporto se der neste sentido, a prática diversificada de atividade física trará, certamente, mais benefícios do que aqueles que já oferece às pessoas, e principalmente às crianças, que o praticam.
Bibliografia:
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https://doi.org/10.1080/1612197X.2009.9671889
Matos, R., & Amaro, N. (2019). Devagar que tenho pressa – antes tarde do que… cedo na especialização desportiva. In: Desporto, Educação e Qualidade de Vida – Centro de Investigação em Qualidade de Vida (CIEQV), IPLeiria e IPS, ISBN: 978-972-8793-89-0.